
Criminoso condenado é enviado à ilha de Manhattan, agora a maior prisão de segurança máxima do país, para resgatar o Presidente dos EUA das mãos de prisioneiros rebeldes.
Crítica:
De tempos em tempos eu sinto uma urgência absurda em ver filmes do John Carpenter. Facilmente um dos meus cineastas favoritos, não só no que diz respeito a filmes B, ele conseguiu estabelecer um tipo de fórmula mágica que consegue me cativar mesmo nos contextos mais duvidosos. Independente do gênero que está sendo explorado no momento, há uma combinação única de elementos em suas produções que me faz enxergar um charme peculiar em tudo que leva seu nome. Até mesmo obras menos queridas e geralmente consideradas falhas como Fantasmas de Marte e Trilogia do Terror conseguem me entreter pela inocência que envolve a construção e condução da narrativa e dos personagens. Essa inocência na abordagem, aliás, é um dos elementos mais marcantes da tal combinação, e de certa forma ela acaba impedindo ideias que parecem ridículas (ou grandiosas demais para uma produção de recursos limitados) de virarem esforços ordinários ou desastres completos no fim das contas.
Em janeiro passado, na data do último aniversário do Carpenter, cheguei a organizar uma pequena maratona comemorativa, mas na verdade acabou sendo só uma desculpa pra atender minha urgência de rever alguns dos meus filmes favoritos do oeuvre carpenteriano. Fuga de Nova York estava entre os títulos da lista, mas por alguma razão que não me recordo agora acabei não assistindo na ocasião. Finalmente revi o filme há poucos dias e não me surpreendi ao perceber que estava me divertindo ainda mais que na última vez, e notando uma série de detalhes que haviam antes passado despercebidos.
A produção funciona como uma espécie de western urbano pós-apocalíptico com toques de exploitation dos anos 70, e traz como protagonista o icônico anti-herói carismático e durão Snake Plissken, vivido por Kurt Russell em sua segunda parceria com Carpenter (a primeira foi em Elvis, ótima biografia do rei feita especialmente para a tevê e exibida originalmente em 1979). Logo no início, somos informados de que devido aos altos índices de criminalidade, no então futuro ano de 1988 a ilha de Manhattan havia se transformado numa prisão de segurança máxima pra onde os mais perigosos criminosos eram enviados. Uma vez lá dentro, não haveria como sair. A ilha foi inteiramente murada e todas as pontes foram minadas para dificultar as tentativas de fuga. Sabemos também que não há guardas dentro da prisão, portanto, os prisioneiros vivem sob suas próprias regras. Corta para 1997. Uma aeromoça terrorista resolve sequestrar o Air Force One em que se encontra o Presidente dos EUA (interpretado por Donald Pleasence) com a intenção de colidir com um prédio da ilha, dando assim “um golpe fatal no estado policial fascista” ao fazer seu líder morrer dentro do “calabouço desumano de sua própria prisão imperialista”. VIVA A REVOLUÇÃO! Bom, o Presidente consegue escapar por um triz através de uma cápsula especial que é lançada do avião pouco antes do impacto, mas mesmo assim acaba caindo na ilha, onde um destino muito pior que a morte o espera: agora ele está sob o domínio dos impiedosos prisioneiros da ilha selvagem de Manhattan. Que Deus o salve.
Acontece que aparentemente Deus não é o suficiente, e isso fica bem claro quando o comissário Bob Hauk (Lee Van Cleef) e o chefe de segurança interpretado por Tom Atkins, amparados por um pelotão de soldados, vão inspecionar o local da queda e encontram a cápsula vazia. É quando um informante dos prisioneiros, com seu visual andrógino que lembra um travesti intergaláctico punk fantasiado de duende, surge das sombras rindo histericamente e ameaçando matar o Presidente caso a polícia não deixe a ilha em 30 segundos. Para provar que não está de brincadeira, ele mostra um dedo decepado do Presidente. A polícia finalmente recua e o travesti punk duende solta um rosnado para que percebamos que estamos lidando com indivíduos altamente perigosos e doentios.
Sem saída, Hauk decide recrutar a pessoa mais indicada para a missão de resgate: sim, senhores, Snake Plissken. Ex-combatente de guerra e agora mercenário e assaltante de bancos recém-condenado, ele é considerado o homem mais mortal do planeta e uma celebridade no mundo do crime. Mas Snake também é um homem de princípios, e diante da proposta de fazer o resgate em troca de sua liberdade e da explicação de como é importante manter o Presidente vivo já que o país está em guerra, ele diz sem hesitar: “I don’t give a fuck about your war... or your president.” Eu mencionei que ele usa um tapa-olho? Pois é. Mas eventualmente Snake resolve pensar com mais carinho na oferta e topa o serviço, já que como um bom badass motherfucker ele não tem nada a perder. Mas antes ele é informado que deve completar a tarefa em exatas 24 horas (o tempo que falta para a importante conferência à qual o Presidente estava a caminho), senão os explosivos que foram sorrateiramente injetados em sua carótida o matarão imediatamente. Caso cumpra a missão a tempo, os explosivos serão prontamente neutralizados com raios-X.
(Ah, e também faz parte da missão recuperar uma fita cassete de conteúdo ultrassecreto que aparentemente tem a ver com fusão nuclear. Como dá pra ver, o futuro é um lugar sem esperanças.)
Enfim, Snake aterrissa no topo de uma das Torres Gêmeas e logo em seguida começa a explorar a ilha e conhecer seus peculiares moradores. A partir daqui, é estabelecida pro resto do filme uma das marcas registradas de Carpenter, que é a situação num espaço desértico e desolado, envolto numa atmosfera pós-apocalíptica. Ruas silenciosas, iluminação mínima e personagens abandonados à própria sorte, tudo retratado por tomadas estáticas, movimentos lentos de câmera e muitos ângulos distantes. O uso dessa técnica acaba adotando um caráter um tanto lúdico, já que é como se estivéssemos num cenário de videogame, observando os personagens interagirem naquele espaço ameaçadoramente amplo e atravessarem as fases do jogo. Por sua vez, essa característica contrasta com a trilha sonora mínima (e às vezes ausente) em sequências mais tensas e com o andamento lento da narrativa, que pode parecer incrivelmente chato pro público acostumado aos filmes de tensão e ação ininterruptas de hoje em dia.
O primeiro lugar que Snake visita na ilha é um teatro destruído onde está sendo encenado um show de vaudeville por presidiários artistas, tendo como plateia um pequeno grupo de tipos estranhos. Entre eles está Cabbie, um amigável e intrometido motorista de táxi interpretado por Ernest Borgnine. Ele logo reconhece Snake e oferece ajuda, enquanto no porão do teatro uma garota punk altamente drogada é jogada de um lado pro outro num círculo de caras punks altamente drogados, enquanto outros punks altamente drogados observam a cena dançando e batendo palmas. Ou seja, gente superbarra-pesada com quem você não quer encrenca. Pouco depois, de volta às ruas, Snake é atacado pelos Loucos, um grupo de arruaceiros noturnos. Ele acaba se refugiando numa lanchonete abandonada chamada Chock Full o’Nuts, onde conhece uma sedutora e misteriosa mulher interpretada por Season Hubley, então mulher de Kurt Russell na vida real. Ela também reconhece Snake e diz a fala que será repetida por todos os outros personagens que o reconhecerem daqui pra frente: “eu achava que você estava morto”. Sedução vai e sedução vem, Snake cai nos encantos da mulher esperançosa de sair daquele lugar, mas quando eles estão próximos de iniciar um momento de prazer, os Loucos atacam novamente e enchem o Chock Full o’Nuts de balas, matando a pobre mulher. É, nossa primeira mocinha em potencial foi pro saco. Cabbie aparece logo em seguida e ajuda Snake a fugir.
<spoilers>
Snake então fica sabendo por Cabbie que o Presidente encontra-se sob o poder do “Duque de Nova York”, supostamente o cara mais temido de toda a ilha. “Uma vez que você o encontra, está morto”, diz Cabbie. Mas Snake insiste, e como é de costume com toda máfia poderosa, é toda uma burocracia pra se ter acesso aos chefões, então ele precisa encontrar primeiro um cara chamado Brain. Brain, vivido pelo grande Harry Dean Stanton, é um senhor sofisticado e safo que usa um lenço no pescoço e que foi parceiro de crimes de Snake há muitos anos. Agora ele mora na biblioteca pública de Nova York, transformada numa verdadeira fortaleza, junto com sua namorada Maggie, interpretada pela voluptuosa musa dos anos 80 (e então esposa de Carpenter) Adrienne Barbeau. Brain revela a Snake o plano do Duque, que consiste numa fuga em massa da ilha usando como escudo o Presidente e um diagrama em posse de Brain com coordenadas para atravessar a ponte minada. O Duque de repente aparece pra pegar o diagrama, mas é despistado por Snake, que obriga Brain e Maggie a mostrarem o muquifo onde o Presidente é mantido refém. Chegando lá, Snake quase consegue libertar o Presidente, que está amordaçado num vagão abandonado, mas acaba sendo pego pelo Duque e sua gangue e transformado em prisioneiro.
No dia seguinte, vemos o Duque tendo um momento de lazer dando tiros numa parede com o Presidente preso no meio dela. O travesti intergaláctico punk fantasiado de duende reaparece nessa cena e volta a rir maniacamente. Enquanto isso, Snake é obrigado a lutar com um brutamonte gigante num ringue, enquanto uma enorme plateia vibra sedenta de sangue. Mas não podemos esquecer que Snake Plissken é o homem mais mortal do universo, e para a surpresa geral (não nossa, obviamente), ele derrota o brutamonte com um taco de baseball cheio de pregos. E agora ele só tem uma hora antes que o seu pescoço exploda, então vamos nos apressar.
Em outro canto, num escritório, o Presidente continua sendo vítima de atos inomináveis de tortura, desta vez praticados por ninguém menos que o travesti duende, que, num dos meus momentos favoritos do filme, amarra o pobre coitado numa cadeira coberta com uma bandeira dos EUA e põe nele uma PERUCA LOIRA para ridicularizá-lo e realizar outros atos sórdidos que jamais chegamos a testemunhar. Sensacional. Mas a diversão dura pouco quando Brain e Maggie chegam, matam todo mundo e libertam o Presidente. Chegou a hora da grande fuga de Nova York!

Tem início então uma implacável perseguição através da ponte minada, com Snake, Cabbie, Brain (munido com o diagrama), Maggie e o Presidente no táxi e o Duque logo atrás em seu Cadillac luxo decorado com globos espelhados. Não demora muito pro táxi passar por uma mina e ser destruído, matando o pobre Cabbie instantaneamente. Os outros agora precisam correr pelas suas vidas, mas logo em seguida é a vez de Brain pisar em falso e ser mandado pelos ares. Maggie se revolta e decide esperar o Duque para acabar com ele com suas próprias mãos, e por um momento ela canaliza a Tenente Ripley (só que com vinte vezes mais peito) e começa a atirar contra o Cadillac do Duque. O Cadillac é atingido, mas aparentemente atinge Maggie de volta num dos atropelamentos mais surreais da História, e no segundo seguinte ela aparece morta e ensanguentada no chão. E você achando que ela seria a mocinha que sobrevive no fim... A essa altura a polícia já havia armado todo um esquema pra resgatar o Presidente na muralha da ilha, e uma corda é jogada quando ele e Snake chegam lá. O Presidente é resgatado primeiro. Snake tem um pequeno problema com a corda e acaba tendo um confronto final com o Duque, que depois de muita porrada é metralhado pelo Presidente já do outro lado. Snake entrega a fita cassete de conteúdo ultrassecreto a Hauk e prontamente tem os explosivos desativados com raios-X. Ufa! Adrenalina pura.
Questionado por Snake sobre como se sente a respeito das mortes de vários inocentes no processo de resgatá-lo, o Presidente embaraçosamente diz que aprecia o esforço e que a nação agradece, num tom de desdém disfarçado que não surpreende Snake nem um pouco. Quando o Presidente finalmente aparece discursando na tal conferência decisiva e coloca a fita pra tocar, descobrimos que na verdade Snake havia entregado uma outra fita contendo a música favorita de Cabbie, o swing “Bandstand Boogie”, tema da popular série American Bandstand. O constrangimento e o desespero tomam conta do semblante do Presidente, enquanto Snake destrói a fita verdadeira – cujo real conteúdo nunca é revelado – na última cena do filme. Snake tem sua vingança, mas o filme termina num tom de pessimismo. Como foi dito anteriormente, o futuro é mesmo um lugar sem esperanças.
</spoilers>
E então você se pergunta: onde é que estava a bendita cabeça decepada da Estátua da Liberdade que é exibida tão ostensivamente nos pôsteres do filme? Bem, nunca houve uma materializada no set. Talvez houvesse caso o orçamento fosse maior, mas foi apenas uma estratégia visual de promoção. Propaganda enganosa? Pode até ser, mas também é puro charme B. Como era comum com os pôsteres dos exploitations dos anos 70, com ilustrações das atrizes em versões bem mais torneadas e voluptuosas. Como curiosidade, J.J. Abrams revelou que a cena em que a Estátua é decapitada em Cloverfield foi inspirada no pôster de Fuga de Nova York.
Como eu disse antes no texto, o filme tem um andamento lento que pode não agradar determinados públicos, mas isso jamais chega a ser um obstáculo para apreciar o trabalho admirável de narrativa, construção de personagens, estabelecimento de atmosfera, design de produção e fotografia que John Carpenter e sua equipe realizam aqui. Sem falar do roteiro divertidíssimo, do elenco incrível e, principalmente, da lendária performance de Kurt Russell, que ficou marcado pra sempre como um dos anti-heróis mais icônicos dos filmes de ação. A genialidade está na simplicidade e na economia, até mesmo ao adotar o visual dark-cool-oitentista-retrô-junk-futurista que meio que abriu caminho para filmes posteriormente lançados, como Blade Runner e O Exterminador do Futuro. E, claro, como em todos os filmes do Carpenter (até mesmo nos que se passam no “mundo real”), todos os elementos aqui parecem operar num universo paralelo muito peculiar, cheio de singularidades e esquisitices que, de uma forma muito identificável, só poderiam ser frutos da mente dele.
Assim como o subsequente Eles Vivem!, com sua espirituosa alegoria da Era Reagan, Fuga de Nova York também tem em sua essência um diálogo com as mazelas sociopolíticas de sua época, com seu roteiro tendo sido escrito em meados dos anos 70, durante o período do Watergate. O cinismo generalizado dos personagens em relação ao Presidente e o constante sentimento de desesperança e apatia são evidentes e uma clara referência ao momento. E ter essa perspectiva do filme a partir do contexto em que foi idealizado é interessante, mas em se tratando de John Carpenter, não exatamente essencial. Fuga de Nova York é, acima de tudo, um divertido filme de ação que ainda ganha pontos por investir num viés satírico e não se render aos batidos clichês do gênero quando chega à sua conclusão.
Outro destaque do filme é a trilha sonora, composta pelo próprio Carpenter e tipicamente repleta de sintetizadores, ainda que também econômica e às vezes quase que totalmente ausente. Tudo aqui é feito com moderação e muito cuidado, e é aí também que entra a inocência sobre a qual falei no primeiro parágrafo. Mesmo ao passar uma mensagem, por exemplo, Carpenter procura não exagerar ou cozinhar demais as coisas, jamais se levando tão a sério a ponto de comprometer o resultado final. Trata-se de uma história que em mãos mais presunçosas e ufanistas poderia se tornar um saco, e em mãos mais oportunistas e irresponsáveis uma grande bobagem. O importante aqui é divertir sem muito compromisso, mas com propriedade, competência e altas doses de criatividade.
Fuga de Nova York gerou uma divertida sequência, Fuga de Los Angeles, lançada em 1996, também escrita e dirigida por Carpenter e com Kurt Russell reprisando seu papel de Snake. Um reboot em forma de trilogia está sendo planejado pros próximos anos, sabe-se lá orquestrado por quem. Façam suas apostas enquanto eu fico aqui morrendo de medo só de pensar nas possibilidades.
Em janeiro passado, na data do último aniversário do Carpenter, cheguei a organizar uma pequena maratona comemorativa, mas na verdade acabou sendo só uma desculpa pra atender minha urgência de rever alguns dos meus filmes favoritos do oeuvre carpenteriano. Fuga de Nova York estava entre os títulos da lista, mas por alguma razão que não me recordo agora acabei não assistindo na ocasião. Finalmente revi o filme há poucos dias e não me surpreendi ao perceber que estava me divertindo ainda mais que na última vez, e notando uma série de detalhes que haviam antes passado despercebidos.
A produção funciona como uma espécie de western urbano pós-apocalíptico com toques de exploitation dos anos 70, e traz como protagonista o icônico anti-herói carismático e durão Snake Plissken, vivido por Kurt Russell em sua segunda parceria com Carpenter (a primeira foi em Elvis, ótima biografia do rei feita especialmente para a tevê e exibida originalmente em 1979). Logo no início, somos informados de que devido aos altos índices de criminalidade, no então futuro ano de 1988 a ilha de Manhattan havia se transformado numa prisão de segurança máxima pra onde os mais perigosos criminosos eram enviados. Uma vez lá dentro, não haveria como sair. A ilha foi inteiramente murada e todas as pontes foram minadas para dificultar as tentativas de fuga. Sabemos também que não há guardas dentro da prisão, portanto, os prisioneiros vivem sob suas próprias regras. Corta para 1997. Uma aeromoça terrorista resolve sequestrar o Air Force One em que se encontra o Presidente dos EUA (interpretado por Donald Pleasence) com a intenção de colidir com um prédio da ilha, dando assim “um golpe fatal no estado policial fascista” ao fazer seu líder morrer dentro do “calabouço desumano de sua própria prisão imperialista”. VIVA A REVOLUÇÃO! Bom, o Presidente consegue escapar por um triz através de uma cápsula especial que é lançada do avião pouco antes do impacto, mas mesmo assim acaba caindo na ilha, onde um destino muito pior que a morte o espera: agora ele está sob o domínio dos impiedosos prisioneiros da ilha selvagem de Manhattan. Que Deus o salve.

Sem saída, Hauk decide recrutar a pessoa mais indicada para a missão de resgate: sim, senhores, Snake Plissken. Ex-combatente de guerra e agora mercenário e assaltante de bancos recém-condenado, ele é considerado o homem mais mortal do planeta e uma celebridade no mundo do crime. Mas Snake também é um homem de princípios, e diante da proposta de fazer o resgate em troca de sua liberdade e da explicação de como é importante manter o Presidente vivo já que o país está em guerra, ele diz sem hesitar: “I don’t give a fuck about your war... or your president.” Eu mencionei que ele usa um tapa-olho? Pois é. Mas eventualmente Snake resolve pensar com mais carinho na oferta e topa o serviço, já que como um bom badass motherfucker ele não tem nada a perder. Mas antes ele é informado que deve completar a tarefa em exatas 24 horas (o tempo que falta para a importante conferência à qual o Presidente estava a caminho), senão os explosivos que foram sorrateiramente injetados em sua carótida o matarão imediatamente. Caso cumpra a missão a tempo, os explosivos serão prontamente neutralizados com raios-X.
(Ah, e também faz parte da missão recuperar uma fita cassete de conteúdo ultrassecreto que aparentemente tem a ver com fusão nuclear. Como dá pra ver, o futuro é um lugar sem esperanças.)
Enfim, Snake aterrissa no topo de uma das Torres Gêmeas e logo em seguida começa a explorar a ilha e conhecer seus peculiares moradores. A partir daqui, é estabelecida pro resto do filme uma das marcas registradas de Carpenter, que é a situação num espaço desértico e desolado, envolto numa atmosfera pós-apocalíptica. Ruas silenciosas, iluminação mínima e personagens abandonados à própria sorte, tudo retratado por tomadas estáticas, movimentos lentos de câmera e muitos ângulos distantes. O uso dessa técnica acaba adotando um caráter um tanto lúdico, já que é como se estivéssemos num cenário de videogame, observando os personagens interagirem naquele espaço ameaçadoramente amplo e atravessarem as fases do jogo. Por sua vez, essa característica contrasta com a trilha sonora mínima (e às vezes ausente) em sequências mais tensas e com o andamento lento da narrativa, que pode parecer incrivelmente chato pro público acostumado aos filmes de tensão e ação ininterruptas de hoje em dia.
O primeiro lugar que Snake visita na ilha é um teatro destruído onde está sendo encenado um show de vaudeville por presidiários artistas, tendo como plateia um pequeno grupo de tipos estranhos. Entre eles está Cabbie, um amigável e intrometido motorista de táxi interpretado por Ernest Borgnine. Ele logo reconhece Snake e oferece ajuda, enquanto no porão do teatro uma garota punk altamente drogada é jogada de um lado pro outro num círculo de caras punks altamente drogados, enquanto outros punks altamente drogados observam a cena dançando e batendo palmas. Ou seja, gente superbarra-pesada com quem você não quer encrenca. Pouco depois, de volta às ruas, Snake é atacado pelos Loucos, um grupo de arruaceiros noturnos. Ele acaba se refugiando numa lanchonete abandonada chamada Chock Full o’Nuts, onde conhece uma sedutora e misteriosa mulher interpretada por Season Hubley, então mulher de Kurt Russell na vida real. Ela também reconhece Snake e diz a fala que será repetida por todos os outros personagens que o reconhecerem daqui pra frente: “eu achava que você estava morto”. Sedução vai e sedução vem, Snake cai nos encantos da mulher esperançosa de sair daquele lugar, mas quando eles estão próximos de iniciar um momento de prazer, os Loucos atacam novamente e enchem o Chock Full o’Nuts de balas, matando a pobre mulher. É, nossa primeira mocinha em potencial foi pro saco. Cabbie aparece logo em seguida e ajuda Snake a fugir.
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Snake então fica sabendo por Cabbie que o Presidente encontra-se sob o poder do “Duque de Nova York”, supostamente o cara mais temido de toda a ilha. “Uma vez que você o encontra, está morto”, diz Cabbie. Mas Snake insiste, e como é de costume com toda máfia poderosa, é toda uma burocracia pra se ter acesso aos chefões, então ele precisa encontrar primeiro um cara chamado Brain. Brain, vivido pelo grande Harry Dean Stanton, é um senhor sofisticado e safo que usa um lenço no pescoço e que foi parceiro de crimes de Snake há muitos anos. Agora ele mora na biblioteca pública de Nova York, transformada numa verdadeira fortaleza, junto com sua namorada Maggie, interpretada pela voluptuosa musa dos anos 80 (e então esposa de Carpenter) Adrienne Barbeau. Brain revela a Snake o plano do Duque, que consiste numa fuga em massa da ilha usando como escudo o Presidente e um diagrama em posse de Brain com coordenadas para atravessar a ponte minada. O Duque de repente aparece pra pegar o diagrama, mas é despistado por Snake, que obriga Brain e Maggie a mostrarem o muquifo onde o Presidente é mantido refém. Chegando lá, Snake quase consegue libertar o Presidente, que está amordaçado num vagão abandonado, mas acaba sendo pego pelo Duque e sua gangue e transformado em prisioneiro.
No dia seguinte, vemos o Duque tendo um momento de lazer dando tiros numa parede com o Presidente preso no meio dela. O travesti intergaláctico punk fantasiado de duende reaparece nessa cena e volta a rir maniacamente. Enquanto isso, Snake é obrigado a lutar com um brutamonte gigante num ringue, enquanto uma enorme plateia vibra sedenta de sangue. Mas não podemos esquecer que Snake Plissken é o homem mais mortal do universo, e para a surpresa geral (não nossa, obviamente), ele derrota o brutamonte com um taco de baseball cheio de pregos. E agora ele só tem uma hora antes que o seu pescoço exploda, então vamos nos apressar.
Em outro canto, num escritório, o Presidente continua sendo vítima de atos inomináveis de tortura, desta vez praticados por ninguém menos que o travesti duende, que, num dos meus momentos favoritos do filme, amarra o pobre coitado numa cadeira coberta com uma bandeira dos EUA e põe nele uma PERUCA LOIRA para ridicularizá-lo e realizar outros atos sórdidos que jamais chegamos a testemunhar. Sensacional. Mas a diversão dura pouco quando Brain e Maggie chegam, matam todo mundo e libertam o Presidente. Chegou a hora da grande fuga de Nova York!

Tem início então uma implacável perseguição através da ponte minada, com Snake, Cabbie, Brain (munido com o diagrama), Maggie e o Presidente no táxi e o Duque logo atrás em seu Cadillac luxo decorado com globos espelhados. Não demora muito pro táxi passar por uma mina e ser destruído, matando o pobre Cabbie instantaneamente. Os outros agora precisam correr pelas suas vidas, mas logo em seguida é a vez de Brain pisar em falso e ser mandado pelos ares. Maggie se revolta e decide esperar o Duque para acabar com ele com suas próprias mãos, e por um momento ela canaliza a Tenente Ripley (só que com vinte vezes mais peito) e começa a atirar contra o Cadillac do Duque. O Cadillac é atingido, mas aparentemente atinge Maggie de volta num dos atropelamentos mais surreais da História, e no segundo seguinte ela aparece morta e ensanguentada no chão. E você achando que ela seria a mocinha que sobrevive no fim... A essa altura a polícia já havia armado todo um esquema pra resgatar o Presidente na muralha da ilha, e uma corda é jogada quando ele e Snake chegam lá. O Presidente é resgatado primeiro. Snake tem um pequeno problema com a corda e acaba tendo um confronto final com o Duque, que depois de muita porrada é metralhado pelo Presidente já do outro lado. Snake entrega a fita cassete de conteúdo ultrassecreto a Hauk e prontamente tem os explosivos desativados com raios-X. Ufa! Adrenalina pura.
Questionado por Snake sobre como se sente a respeito das mortes de vários inocentes no processo de resgatá-lo, o Presidente embaraçosamente diz que aprecia o esforço e que a nação agradece, num tom de desdém disfarçado que não surpreende Snake nem um pouco. Quando o Presidente finalmente aparece discursando na tal conferência decisiva e coloca a fita pra tocar, descobrimos que na verdade Snake havia entregado uma outra fita contendo a música favorita de Cabbie, o swing “Bandstand Boogie”, tema da popular série American Bandstand. O constrangimento e o desespero tomam conta do semblante do Presidente, enquanto Snake destrói a fita verdadeira – cujo real conteúdo nunca é revelado – na última cena do filme. Snake tem sua vingança, mas o filme termina num tom de pessimismo. Como foi dito anteriormente, o futuro é mesmo um lugar sem esperanças.
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E então você se pergunta: onde é que estava a bendita cabeça decepada da Estátua da Liberdade que é exibida tão ostensivamente nos pôsteres do filme? Bem, nunca houve uma materializada no set. Talvez houvesse caso o orçamento fosse maior, mas foi apenas uma estratégia visual de promoção. Propaganda enganosa? Pode até ser, mas também é puro charme B. Como era comum com os pôsteres dos exploitations dos anos 70, com ilustrações das atrizes em versões bem mais torneadas e voluptuosas. Como curiosidade, J.J. Abrams revelou que a cena em que a Estátua é decapitada em Cloverfield foi inspirada no pôster de Fuga de Nova York.
Como eu disse antes no texto, o filme tem um andamento lento que pode não agradar determinados públicos, mas isso jamais chega a ser um obstáculo para apreciar o trabalho admirável de narrativa, construção de personagens, estabelecimento de atmosfera, design de produção e fotografia que John Carpenter e sua equipe realizam aqui. Sem falar do roteiro divertidíssimo, do elenco incrível e, principalmente, da lendária performance de Kurt Russell, que ficou marcado pra sempre como um dos anti-heróis mais icônicos dos filmes de ação. A genialidade está na simplicidade e na economia, até mesmo ao adotar o visual dark-cool-oitentista-retrô-junk-futurista que meio que abriu caminho para filmes posteriormente lançados, como Blade Runner e O Exterminador do Futuro. E, claro, como em todos os filmes do Carpenter (até mesmo nos que se passam no “mundo real”), todos os elementos aqui parecem operar num universo paralelo muito peculiar, cheio de singularidades e esquisitices que, de uma forma muito identificável, só poderiam ser frutos da mente dele.
Assim como o subsequente Eles Vivem!, com sua espirituosa alegoria da Era Reagan, Fuga de Nova York também tem em sua essência um diálogo com as mazelas sociopolíticas de sua época, com seu roteiro tendo sido escrito em meados dos anos 70, durante o período do Watergate. O cinismo generalizado dos personagens em relação ao Presidente e o constante sentimento de desesperança e apatia são evidentes e uma clara referência ao momento. E ter essa perspectiva do filme a partir do contexto em que foi idealizado é interessante, mas em se tratando de John Carpenter, não exatamente essencial. Fuga de Nova York é, acima de tudo, um divertido filme de ação que ainda ganha pontos por investir num viés satírico e não se render aos batidos clichês do gênero quando chega à sua conclusão.
Outro destaque do filme é a trilha sonora, composta pelo próprio Carpenter e tipicamente repleta de sintetizadores, ainda que também econômica e às vezes quase que totalmente ausente. Tudo aqui é feito com moderação e muito cuidado, e é aí também que entra a inocência sobre a qual falei no primeiro parágrafo. Mesmo ao passar uma mensagem, por exemplo, Carpenter procura não exagerar ou cozinhar demais as coisas, jamais se levando tão a sério a ponto de comprometer o resultado final. Trata-se de uma história que em mãos mais presunçosas e ufanistas poderia se tornar um saco, e em mãos mais oportunistas e irresponsáveis uma grande bobagem. O importante aqui é divertir sem muito compromisso, mas com propriedade, competência e altas doses de criatividade.
Fuga de Nova York gerou uma divertida sequência, Fuga de Los Angeles, lançada em 1996, também escrita e dirigida por Carpenter e com Kurt Russell reprisando seu papel de Snake. Um reboot em forma de trilogia está sendo planejado pros próximos anos, sabe-se lá orquestrado por quem. Façam suas apostas enquanto eu fico aqui morrendo de medo só de pensar nas possibilidades.
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