
Título original: Dead Ringers
Ano: 1988 Direção: David Cronenberg País: Canadá / EUA Duração: 116 min Elenco: Jeremy Irons, Geneviève Bujold, Heidi von Palleske, Barbara Gordon |
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Gêmeos idênticos ginecologistas que compartilham tudo têm a relação severamente abalada quando um deles se apaixona por uma atriz famosa.
Crítica:
A simples associação entre a palavra “gêmeos” e o nome David Cronenberg já torna o fenômeno biológico algo estranho e aterrador. A obsessão do diretor por representar ânsias, medos e desejos através da desfiguração e consequente destruição do corpo humano, configurando aí sua marca distinta de body horror, chega a pontos extremos de bizarrice visual em filmes como Calafrios, Videodrome e A Mosca. Era só uma questão de tempo até ele transformar a gemelaridade em uma fonte de terror e paranoia, usando-a como metáfora para conflitos de personalidade e dependências físicas e psicológicas. No entanto, Gêmeos - Mórbida Semelhança traz um horror visualmente mais sutil, afastando um pouco Cronenberg dos elementos de filme B proeminentes em seus trabalhos anteriores para dar lugar a um complexo estudo de personagem. E nisso ele conta com não uma, mas duas performances estupendas de Jeremy Irons.
Mas antes é preciso deixar claro que com Cronenberg o buraco é sempre mais embaixo, e o filme não traz apenas gêmeos idênticos como personagens centrais, mas sim GÊMEOS IDÊNTICOS GINECOLOGISTAS. Prepare-se para uma boa dose de terror vaginal. Elliot e Beverly Mantle são apresentados ainda na infância, desde cedo nutrindo um interesse peculiar por sistemas reprodutivos. Ao convidarem uma coleguinha pra fazer sexo com eles na banheira como parte de um “experimento científico”, os dois são rechaçados pela menina, que os chama de aberrações e diz que eles nem sabem o que é foder. Uma fofura só essas crianças. Vinte anos se passam e os dois são ginecologistas reconhecidos e premiados na área, dividindo o mesmo ambiente de trabalho, o mesmo apartamento, e, claro, as mesmas mulheres. Porém, ambos desenvolveram personalidades bem diferentes: enquanto Elliot é firme, desenvolto e racional, sempre tomando a frente da situação, Beverly faz o tipo retraído, inseguro e vulnerável.
Logo nos primeiros minutos, o filme procura deixar bem evidente a dependência da relação dos gêmeos. Os dois funcionam como um só, representando lados diferentes da mesma moeda, e conseguem se equilibrar perfeitamente em todos os aspectos. Mas claro que não por muito tempo, e adivinha o que aparece no meio do caminho pra atrapalhar tudo... SIM, uma mulher. Claire Niveau (Geneniève Bujold), uma famosa atriz de cinema e TV, durante um exame realizado por Beverly descobre que tem um útero “trifurcado”. Beverly fica fascinado com a anomalia da mulher e vai contar a Elliot, que assume a posição do irmão no exame sem que Claire suspeite de nada. Ela está em Toronto filmando uma minissérie e é alheia à fama dos Mantle. Elliot a seduz para depois “passar a bola” pra Beverly, que fica sem jeito com as tendências masoquistas da atriz, movidas pela solidão e pela frustração de não poder engravidar. Os irmãos seguem revezando nos encontros com Claire, e pelo meio temos uma bizarra cena de sexo entre ela e Elliot envolvendo pinças cirúrgicas e tubos de borracha. O problema é que no processo Beverly acaba se apaixonando por Claire e não quer mais dividi-la com o irmão, e é aí que o bicho pega.
<spoilers>
A tensão entre os dois cresce cada vez mais, principalmente depois que eles se dão conta de que Claire tem enchido-lhes de drogas, colocando às escondidas substâncias nas bebidas para estimulá-los sexualmente. Elliot aconselha o irmão a largar a atriz, mas ele se recusa. Ela finalmente descobre que está se relacionando com gêmeos idênticos, e arma um encontro com os dois ao mesmo tempo para desmascará-los. Elliot é sarcástico e humilha Claire, mas Beverly fica completamente transtornado e constrangido com a situação. A partir daí ele passa a beber e se afundar em drogas, dando vexames em público e tendo pesadelos e alucinações. É o jeito que ele encontra de lidar com a ideia de ser totalmente independente, de pela primeira vez não compartilhar uma experiência com o irmão. Na cena mais tipicamente Cronenberg do filme, Beverly tem um pesadelo em que ele e Elliot estão deitados na cama ligados por uma espécie de cordão umbilical, e Claire tenta separá-los usando os dentes. E claro que o momento é bem gráfico e nojento. Já reconciliado com Claire, Beverly segue consumindo cada vez mais drogas e continua sua saga ladeira abaixo.
Claire viaja para longe por conta de compromissos profissionais, e Beverly começa a agir de maneira psicótica, tendo crises de ciúme e aterrorizando os colegas de trabalho de Claire por telefone. Durante um exame ginecológico, ele usa um instrumento inapropriado que causa dor na paciente, dizendo depois ao irmão que o problema não era o instrumento, e sim o corpo da mulher. No ápice da loucura, ele encomenda a um escultor protótipos em aço cirúrgico de uma série de instrumentos bizarros desenhados por ele mesmo para utilizar em mulheres mutantes. Só imaginar as finalidades doentias dos instrumentos, que lembram patas de insetos gigantes, já é perturbador o suficiente. Beverly surta durante uma cirurgia enquanto tenta usar os novos instrumentos e o conselho da clínica decide encerrar as atividades dos irmãos. Elliot se dá conta de que a única forma de salvar Beverly é descer ao mesmo inferno para poder ficar em “sincronia” com ele. Para isso, ele passa a beber e a usar as mesmas drogas. A coisa toda caminha pra um final previsivelmente trágico, mas belo e comovente. Só adianto que os instrumentos cirúrgicos para mulheres mutantes acabam ganhando um outro propósito.
</spoilers>
Como é de se esperar de algo comandado por Cronenberg, Gêmeos é uma experiência fascinante e perturbadora. Embora seja bem menos explícito no gore e nas bizarrices físicas, talvez seja o filme mais denso e deprimente realizado por ele. O horror vem das sutilezas, do que é sugerido, dos detalhes. O tom é constantemente mórbido, os personagens infelizes e a ambientação opressiva, representando visualmente a alienação daqueles indivíduos. Cronenberg também explora o sexo daquele seu jeito fetichista bem característico, mas como uma forma de expressar o vazio das vidas dos personagens, que precisam chegar a pontos extremos de autodestruição para sentirem algum prazer. Os momentos mais sexuais de Gêmeos ecoam aqueles de Videodrome e prenunciam os que viriam anos depois com Crash - Estranhos Prazeres.
Mas o grande trunfo de Gêmeos mesmo é a interpretação magistral de Jeremy Irons, que num trabalho minucioso de caracterização consegue construir dois personagens bem diferentes sem apelar para artificialidades. Não é nas diferenças de cabelo e figurino que a gente distingue Elliot de Beverly, mas nos pequenos gestos, nos olhares, no tom de voz. É tudo muito bem calculado e colocado com sensibilidade, e num mundo justo Irons teria não só sido indicado, mas levado o Oscar de Melhor Ator pra casa. O resto do elenco também faz um ótimo trabalho, especialmente Geneviève Bujold, que constrói com delicadeza as diferentes camadas de sua personagem, mas Gêmeos é sem dúvidas um espetáculo de um homem só.
É um daqueles filmes que exigem o humor certo para serem assistidos, e definitivamente não é dos mais acessíveis de Cronenberg. Mas é um trabalho de mestre, que apreciado no momento ideal revela o que o diretor sabe fazer de melhor. É uma produção envolvente, inquietante, bizarra, sexy, provocadora e incrivelmente bem realizada, cheia de simbolismos e camadas de significados. Citando a tagline de divulgação do filme, nas mãos de Cronenberg a separação pode, de fato, ser algo bem aterrorizante.
Mas antes é preciso deixar claro que com Cronenberg o buraco é sempre mais embaixo, e o filme não traz apenas gêmeos idênticos como personagens centrais, mas sim GÊMEOS IDÊNTICOS GINECOLOGISTAS. Prepare-se para uma boa dose de terror vaginal. Elliot e Beverly Mantle são apresentados ainda na infância, desde cedo nutrindo um interesse peculiar por sistemas reprodutivos. Ao convidarem uma coleguinha pra fazer sexo com eles na banheira como parte de um “experimento científico”, os dois são rechaçados pela menina, que os chama de aberrações e diz que eles nem sabem o que é foder. Uma fofura só essas crianças. Vinte anos se passam e os dois são ginecologistas reconhecidos e premiados na área, dividindo o mesmo ambiente de trabalho, o mesmo apartamento, e, claro, as mesmas mulheres. Porém, ambos desenvolveram personalidades bem diferentes: enquanto Elliot é firme, desenvolto e racional, sempre tomando a frente da situação, Beverly faz o tipo retraído, inseguro e vulnerável.
Logo nos primeiros minutos, o filme procura deixar bem evidente a dependência da relação dos gêmeos. Os dois funcionam como um só, representando lados diferentes da mesma moeda, e conseguem se equilibrar perfeitamente em todos os aspectos. Mas claro que não por muito tempo, e adivinha o que aparece no meio do caminho pra atrapalhar tudo... SIM, uma mulher. Claire Niveau (Geneniève Bujold), uma famosa atriz de cinema e TV, durante um exame realizado por Beverly descobre que tem um útero “trifurcado”. Beverly fica fascinado com a anomalia da mulher e vai contar a Elliot, que assume a posição do irmão no exame sem que Claire suspeite de nada. Ela está em Toronto filmando uma minissérie e é alheia à fama dos Mantle. Elliot a seduz para depois “passar a bola” pra Beverly, que fica sem jeito com as tendências masoquistas da atriz, movidas pela solidão e pela frustração de não poder engravidar. Os irmãos seguem revezando nos encontros com Claire, e pelo meio temos uma bizarra cena de sexo entre ela e Elliot envolvendo pinças cirúrgicas e tubos de borracha. O problema é que no processo Beverly acaba se apaixonando por Claire e não quer mais dividi-la com o irmão, e é aí que o bicho pega.
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A tensão entre os dois cresce cada vez mais, principalmente depois que eles se dão conta de que Claire tem enchido-lhes de drogas, colocando às escondidas substâncias nas bebidas para estimulá-los sexualmente. Elliot aconselha o irmão a largar a atriz, mas ele se recusa. Ela finalmente descobre que está se relacionando com gêmeos idênticos, e arma um encontro com os dois ao mesmo tempo para desmascará-los. Elliot é sarcástico e humilha Claire, mas Beverly fica completamente transtornado e constrangido com a situação. A partir daí ele passa a beber e se afundar em drogas, dando vexames em público e tendo pesadelos e alucinações. É o jeito que ele encontra de lidar com a ideia de ser totalmente independente, de pela primeira vez não compartilhar uma experiência com o irmão. Na cena mais tipicamente Cronenberg do filme, Beverly tem um pesadelo em que ele e Elliot estão deitados na cama ligados por uma espécie de cordão umbilical, e Claire tenta separá-los usando os dentes. E claro que o momento é bem gráfico e nojento. Já reconciliado com Claire, Beverly segue consumindo cada vez mais drogas e continua sua saga ladeira abaixo.
Claire viaja para longe por conta de compromissos profissionais, e Beverly começa a agir de maneira psicótica, tendo crises de ciúme e aterrorizando os colegas de trabalho de Claire por telefone. Durante um exame ginecológico, ele usa um instrumento inapropriado que causa dor na paciente, dizendo depois ao irmão que o problema não era o instrumento, e sim o corpo da mulher. No ápice da loucura, ele encomenda a um escultor protótipos em aço cirúrgico de uma série de instrumentos bizarros desenhados por ele mesmo para utilizar em mulheres mutantes. Só imaginar as finalidades doentias dos instrumentos, que lembram patas de insetos gigantes, já é perturbador o suficiente. Beverly surta durante uma cirurgia enquanto tenta usar os novos instrumentos e o conselho da clínica decide encerrar as atividades dos irmãos. Elliot se dá conta de que a única forma de salvar Beverly é descer ao mesmo inferno para poder ficar em “sincronia” com ele. Para isso, ele passa a beber e a usar as mesmas drogas. A coisa toda caminha pra um final previsivelmente trágico, mas belo e comovente. Só adianto que os instrumentos cirúrgicos para mulheres mutantes acabam ganhando um outro propósito.
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Como é de se esperar de algo comandado por Cronenberg, Gêmeos é uma experiência fascinante e perturbadora. Embora seja bem menos explícito no gore e nas bizarrices físicas, talvez seja o filme mais denso e deprimente realizado por ele. O horror vem das sutilezas, do que é sugerido, dos detalhes. O tom é constantemente mórbido, os personagens infelizes e a ambientação opressiva, representando visualmente a alienação daqueles indivíduos. Cronenberg também explora o sexo daquele seu jeito fetichista bem característico, mas como uma forma de expressar o vazio das vidas dos personagens, que precisam chegar a pontos extremos de autodestruição para sentirem algum prazer. Os momentos mais sexuais de Gêmeos ecoam aqueles de Videodrome e prenunciam os que viriam anos depois com Crash - Estranhos Prazeres.
Mas o grande trunfo de Gêmeos mesmo é a interpretação magistral de Jeremy Irons, que num trabalho minucioso de caracterização consegue construir dois personagens bem diferentes sem apelar para artificialidades. Não é nas diferenças de cabelo e figurino que a gente distingue Elliot de Beverly, mas nos pequenos gestos, nos olhares, no tom de voz. É tudo muito bem calculado e colocado com sensibilidade, e num mundo justo Irons teria não só sido indicado, mas levado o Oscar de Melhor Ator pra casa. O resto do elenco também faz um ótimo trabalho, especialmente Geneviève Bujold, que constrói com delicadeza as diferentes camadas de sua personagem, mas Gêmeos é sem dúvidas um espetáculo de um homem só.
É um daqueles filmes que exigem o humor certo para serem assistidos, e definitivamente não é dos mais acessíveis de Cronenberg. Mas é um trabalho de mestre, que apreciado no momento ideal revela o que o diretor sabe fazer de melhor. É uma produção envolvente, inquietante, bizarra, sexy, provocadora e incrivelmente bem realizada, cheia de simbolismos e camadas de significados. Citando a tagline de divulgação do filme, nas mãos de Cronenberg a separação pode, de fato, ser algo bem aterrorizante.
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