quinta-feira, 9 de maio de 2013

As Senhoras de Salem

Título original: The Lords of Salem

Ano: 2012

Direção: Rob Zombie

País: EUA / Reino Unido / Canadá

Duração: 101 min

Elenco: Sheri Moon Zombie, Bruce Davison, Judy Geeson, Patricia Quinn, Dee Wallace, Michael Berryman, Maria Conchita Alonso, Ken Foree, Meg Foster, Sid Haig, Jeffrey Daniel Phillips
Avaliação:
Sinopse:
Uma DJ de uma estação de rádio de Salem, Massachusetts, ganha de presente um misterioso disco de vinil e começa a ter visões e pesadelos perturbadores quando ouve a bizarra música contida nele.

Crítica:
Vamos logo direto ao ponto: The Lords of Salem é um filme difícil. Não no sentido de ser inassistível, chato ou complicado demais. Na realidade, não é nenhuma dessas coisas. É um filme difícil porque se arrisca numa abordagem que não só não é habitual no gênero do horror mais comercial como também é, em sua maior parte, estranha no currículo cinematográfico do próprio Rob Zombie. Tanto que dessa vez o efeito “ame-ou-odeie”, comum com as produções dele, não ficou restrito somente ao nível superficial da crítica e do público em geral, mas tem dividido severamente as opiniões dos fãs do rockeiro cineasta. Bom, não que o “remake” de Halloween e sua continuação tenham tido uma recepção menos controversa, mas ali Zombie estava mexendo com uma franquia de sucesso e obtendo um relativo êxito nas bilheterias. No caso de The Lords of Salem, a coisa se agrava por ser uma produção independente e bem mais modesta (porém muito ambiciosa) que tem passado sem muito alarde pelos cinemas lá fora.

Mas afinal de contas, o que o novo filme do Rob Zombie tem de tão discrepante e segmentador? Antes de qualquer coisa, não é novidade pra ninguém que o cinema que Zombie faz é um cinema altamente referencial, e nesse ponto The Lords of Salem não é nem um pouco diferente.  O elenco é repleto de figuras familiares pros fãs de horror, há muitas passagens que prestam homenagem a outras produções do gênero, e a trilha sonora, impecavelmente selecionada, é recheada de clássicos do rock. Entretanto, ao passo que Rejeitados pelo Diabo, ainda seu filme mais cultuado, investe majoritariamente na sanguinolência gratuita de exemplares célebres do cinema-açougue como O Massacre da Serra Elétrica, Aniversário Macabro e Quadrilha de Sádicos - incluindo aí referências a westerns, Groucho Marx, snuff movies e doses cavalares de humor negro -, em Lords Zombie opta por investigar outros subgêneros. Mergulhando de cabeça na temática satanista, ele toma emprestados elementos do horror gótico da Hammer, homenageia produções como O Bebê de Rosemary e O Iluminado, e, mais surpreendentemente, evoca o cinema psicodélico do cultuado cineasta franco-chileno Alejandro Jodorowsky, com suas imagens impressionantes carregadas de cores vibrantes e iconografia religiosa. E tudo isso ancorado por um tipo de estrutura narrativa muito característico de produções dos anos 70, cujos aspectos serão discutidos mais adiante no decorrer do texto. Mas vamos de uma vez por todas ao filme propriamente dito.

The Lords of Salem tem início com flashbacks da cidade de Salém no séc. XVII, que incluem cenas de um ritual satânico sendo praticado numa floresta por um clã de bruxas. O clã é liderado pela poderosa Margaret Morgan, interpretada por Meg Foster (Eles Vivem!, A Floresta das Esmeraldas), e nele não há nenhuma deusa da sensualidade como poderia se esperar. Aqui as bruxas são realmente repugnantes, com seus dentes podres, rostos sujos e corpos decadentes, e quando elas ficam totalmente nuas para iniciar a profanação de símbolos religiosos a visão não é nem um pouco estimulante. Bem como deveria ser um ritual de verdade naquela época. Quando a imagem em movimento de um bode em close é pausada e nela sobreposta o letreiro com o título do filme numa fonte encantadoramente tosca, bem no estilo B anos 70, é estabelecida oficialmente a pegada old school da produção. Emendando, nossa primeira referência a O Iluminado, com a introdução de letreiros que aparecerão ao longo do filme indicando os dias da semana. Sim, porque o negócio vai ser épico.

Somos trazidos então aos dias atuais e apresentados a Heidi, vivida pela esposa e eterna musa-mor do diretor, Sheri Moon Zombie. Logo de cara ele nos brinda com a visão dela nua deitada em sua cama, mas ao contrário do que acontece em Rejeitados pelo Diabo, em que a nudez de Sheri é retratada de forma banal e gratuita, aqui ela é mostrada cuidadosamente, de uma maneira mais “artística” e delicada. Temos também mais uma referência ao Cinema na cama de Heidi, que é decorada com a famosa imagem de Viagem à Lua. Logo nesses instantes introdutórios da nossa protagonista, acordando e perambulando em seu apartamento ao lado de seu inseparável cachorro Troy, é estabelecida uma atmosfera inquietante que parece pairar no prédio em que ela vive. Câmeras que passeiam sem pressa pelo interior do apartamento e pelos corredores, planos longos e estáticos enquadrados a uma certa distância que ameaçam revelar algo terrível escondido em algum canto e silêncios desconfortáveis contribuem para a criação dessa atmosfera. Aliás, é uma receita que também vem de O Iluminado, principalmente no que diz respeito aos enquadramentos distantes de espaços amplos e fechados, tornando-os ainda mais ameaçadores.

No prédio de Heidi, a coisa fica ainda mais ameaçadora quando ela sai no corredor pra pegar o jornal e avista lá do outro lado a silhueta do que julga ser um novo inquilino, em pé na porta do até então inabitado apartamento nº 5. Ela tenta mostrar um pouco de hospitalidade e cumprimenta a figura, mas parece que hoje o novo vizinho não está a fim de uma xícara de açúcar e bate a porta na cara dela. Logo em seguida Heidi encontra a síndica do prédio, interpretada por Judy Geeson (A Morta Segue Seus Passos), e diz a ela que acabou de conhecer o novo inquilino, ao que a outra responde que não há ninguém no nº 5 e que o apartamento nunca foi alugado. Estranho. Mas enfim, hora de ir trabalhar porque alguém precisa ganhar a vida.

Hora de conhecer o ambiente de trabalho de Heidi. Ela é uma DJ e apresentadora num programa de rádio local, junto com os colegas Herman Jackson (Ken Foree, de Despertar dos Mortos e Do Além) e Herman “Whitey” Salvador (Jeffrey Daniel Phillips), que aparentemente é um interesse romântico em potencial. Aqui o filme se sai bem ao estabelecer em poucos minutos a divertida convivência e cumplicidade entre os três personagens, e como eles se entretêm com as músicas que tocam e os ocasionais convidados, como o hilário membro de uma banda de heavy metal que tem como filosofia “expor as mentiras das prostitutas cristãs e de Jesus, o verdadeiro portador da morte”. Quando o programa da noite termina, Heidi recebe na saída do prédio da rádio uma caixa de madeira contendo um misterioso disco de vinil, que supostamente é de uma banda chamada “The Lords”. Ela leva o disco pra casa, acompanhada de Whitey, e os dois põem o bolachão pra tocar. O que se ouve é uma sucessão de notas dissonantes e repetitivas, como se o disco estivesse arranhado. Ao ouvir a bizarra música, Heidi começa a ter fortes dores de cabeça e visões das bruxas que conhecemos no início do filme, desta vez fazendo o parto de uma mulher COM UM FACÃO. Aparentemente a mulher havia sido recrutada pelo clã pra gerar o filho de Satã ou algo do tipo. O problema é que a criança nasce normal e saudável, o que não deixa Margaret Morgan particularmente feliz, fazendo-a cuspir repetidas vezes na “cara repugnante” do recém-nascido. Terminada a bela canção, Whitey se manda e Heidi perambula no apartamento durante a madrugada, quando finalmente temos o primeiro grande susto do filme, e BAM! Terça-feira.


Ficamos sabendo que Heidi frequenta um grupo de apoio de dependentes químicos, e claro que mais à frente essa informação desempenhará um papel importante na história. Mais tarde, somos apresentados ao personagem de Bruce Davison (Calafrio, Kingdom Hospital, X-Men), um escritor especializado em bruxaria e satanismo chamado Francis Matthias que é o convidado do programa da noite. Ele responde perguntas sobre o julgamento das bruxas de Salém e tenta esclarecer algumas dúvidas a respeito dos mitos que envolvem as bruxas e seus supostos rituais. No fim do programa, Heidi e os Hermans resolvem tocar o disco dos “Lords”, e enquanto ela tem mais uma terrível dor de cabeça ao escutar a música, vemos as mulheres da cidade que estão sintonizadas na rádio entrando num transe catatônico. O interessante aqui é que esse elemento do enredo parece uma forma espirituosa que Zombie encontrou de fazer o que seria o seu Halloween III, já que na sequência original de 1982 as crianças que assistem ao comercial das máscaras Silver Shamrock, embalado por um irritante jingle, ficam hipnotizadas e ensandecidas.

Heidi volta pro seu prédio e é apresentada às irmãs de Lacy, a síndica, que são interpretadas por nada menos que duas grandes divas do horror, Dee Wallace (Quadrilha de Sádicos, Grito de Horror, Cujo) e Patricia Quinn (Rocky Horror Picture Show). O trio serelepe aqui, aliás, é responsável por alguns dos momentos mais divertidos do filme, especialmente a personagem de Quinn. Não demora muito pra que a gente perceba que as três na verdade fazem parte de um clã de bruxas modernas e que o interesse delas em Heidi esconde intenções bem macabras. Pouco depois, tem início uma ótima sequência em que Heidi, num estado de transe, entra no misterioso apartamento nº 5 e tem visões de monstruosas criaturas, com tudo culminando num assustador encontro no corredor do prédio com o fantasma de Margaret Morgan, que diz algo relacionado às “cunting daughters of Salem”, numa óbvia referência a uma famosa fala de O Exorcista. No dia seguinte, Heidi resolve entrar numa igreja e sentar um pouco pra refletir, numa das minhas cenas favoritas, e é logo amparada por um padre gostosão que começa gentil e complacente e de repente transforma-se num violento e ameaçador maníaco sexual, forçando-a a fazer sexo oral nele enquanto a chama de “vadia imunda de Satã”. No clímax da cena, Heidi acorda num susto, ainda sentada com o padre gentil e dócil, e descobre que tudo não passou de uma alucinação. Agora ela está possuída por pensamentos pecaminosos e heréticos, mas o que será que exatamente está acontecendo?

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Enquanto isso, Matthias, que havia ficado bastante intrigado com o disco que Heidi ganhou de presente, resolve investigar as origens da estranha música. Nas últimas páginas do que foi publicado do diário de Jonathan Hawthorne, o reverendo responsável pela execução de Margaret Morgan e seu clã em 1696, ele encontra uma partitura musical. Com a ajuda de sua mulher pintora, musicista, artista multimídia e eventualmente maconheira interpretada por Maria Conchita Alonso, ele descobre que as notas da partitura são exatamente as mesmas da música do disco, e mais: que o reverendo se referia às bruxas como “The Lords of Salem” e que a melodia é uma espécie de veículo pra uma maldição dirigida às mulheres da cidade e a todos os futuros descendentes de Hawthorne, cuja linhagem seria a partir de então o “vaso sanguíneo em que o filho do demônio herdaria a Terra”. É só uma questão de tempo para ele confirmar que Heidi, cujo verdadeiro sobrenome é Hawthorne, faz parte dessa linhagem amaldiçoada.

A partir daqui, a narrativa até então bastante linear e pacientemente desenvolvida assume um caráter mais surreal e episódico, com Heidi cada vez mais abatida continuando a ter visões de criaturas monstruosas e mais pesadelos e alucinações horripilantes. Eventualmente ela volta a usar drogas pesadas e gradualmente torna-se mais vulnerável ao trio das irmãs bruxas, cujos planos funestos começam a ficar mais claros. A essa altura, não é surpreendente quando Matthias acaba indo pro saco no processo. Uma das sequências mais impressionantes e memoráveis do filme se dá quando Heidi é conduzida pelo trio ao apartamento nº 5, cujo interior transforma-se numa imensa catedral onde ela tem um encontro particularmente perturbador com Satanás “em pessoa”. Aqui ele é retratado com um anão/troll de aparência bizarra que lembra um frango assado gigante. Em determinado momento ele lança na direção de Heidi um par de tentáculos/tripas que ao mesmo tempo parecem pênis gigantescos, deixando subentendido que foi realizado algum tipo de fecundação. A influência de Jodorowsky nessa cena é inegável, principalmente por conta da justaposição do aspecto grotesco e repugnante do demônio com a beleza estética de toda a composição visual em volta, assim como também pelo tom solene da cena, embalada por nada menos que o Réquiem em Ré Menor de Mozart. E confesso que fiquei genuinamente assustado quando pouco depois o troll satânico, cuja aparência descrita no papel soa boba e infantil, aparece ao lado da cama de Heidi.

O último ato do filme tem como foco o evento que havia sido anunciado pela rádio como um concerto dos “Lords”, mas que na verdade consiste na macabra cerimônia que possuirá as mulheres de Salém e “elevará” Heidi ao status de santa, uma espécie de Virgem Maria satânica. Como eu disse anteriormente no texto, o filme adota uma estrutura narrativa que é muito característica de produções de baixo orçamento dos anos 70, com a maior parte da projeção dedicada ao estabelecimento gradual da atmosfera e ao desenvolvimento progressivo da trama e dos personagens e poucos minutos reservados no final para a ação principal acontecer e culminar num clímax. Tanto que assistindo a The Lords of Salem, tendo conhecimento prévio de sua duração, eu senti aquela aflição clássica que dá com filmes antigos de andamento semelhante, pensando: “mas não vai dar tempo de acontecer isso tudo, só faltam cinco minutos pra terminar!”. E não me surpreendi ao constatar a mágica que é realizada nesses minutos finais. Mas quando o inferno toma conta em Lords, não é com violência, mortes, explosões e correria. O que temos aqui é uma sequência impressionante de imagens psicodélicas de cair o queixo, em que a influência de Jodorowsky (com pinceladas de Kubrick, Ken Russell e Peter Greenaway, vale ressaltar) é sentida ao máximo. As imagens incluem padres zumbis se masturbando, Heidi cavalgando num bode empalhado, freiras necrosadas, bebês mortos crucificados e montagens cartunescas profanando símbolos cristãos. A coisa toda culmina com Heidi dando a luz a um bebê monstruoso e depois posando como uma estátua da tal Virgem Maria satânica, sendo reverenciada pelas bruxas. E fim.
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É uma pena que o filme esteja sendo recebido tão pobremente pelo público em geral e por boa parte dos fãs, porque é realmente um exercício de estilo admirável por parte de Zombie. Tenho a impressão de que o anúncio prematuro da produção, que passou por toda uma via-crúcis (rá!) até ser finalmente lançada, gerou uma expectativa muito grande e acabou decepcionando o público que esperava um “retorno à forma” depois do fiasco dos remakes de Halloween. E desconfio que esse mesmo público imaginava que Lords viria a ser uma espécie de Rejeitados pelo Diabo situado em Salém na época das bruxas, o que acabou não se materializando. Em vez disso, fomos brindados com um espetacular horror art house totalmente atmosférico que realmente parece um produto autêntico da década de 70, e sem forçar a barra pra conseguir isso. Tudo está nos detalhes e sutilezas, desde a acertada decisão de não utilizar efeitos especiais gerados por computação gráfica até o uso de técnicas datadas, características da época, como zooms e diálogos em off da cena seguinte sendo sobrepostos à que estamos vendo no momento, gerando um tipo de transição bem distinto.

Como Tarantino, também um cineasta essencialmente referencial, Rob Zombie conhece intimamente os tipos de linguagem com os quais resolve trabalhar. Não há amadorismo aqui. Tudo é milimetricamente calculado com a perspicácia de um obsessivo amante do Cinema, e se restava alguma dúvida do talento dele pra isso em Rejeitados pelo Diabo, The Lords of Salem veio só confirmar – ainda que tenha dividido tão fortemente as opiniões. Não que o filme seja perfeito. Penso, por exemplo, que Zombie poderia ter escalado uma atriz mais experiente e expressiva pro papel de Heidi, ainda que este não seja necessariamente dos mais exigentes. Mas seria interessante uma atriz realmente competente conferindo uma intensidade a mais. Sheri Moon Zombie é uma figura com a qual eu simpatizo, mas ela (que é uma atriz só de filmes do marido) ainda não tem propriedades dramáticas suficientes pra carregar um filme inteiro nas costas. Por outro lado, Sheri tem seu charme, e os filmes B que tanto inspiram Zombie nunca viveram de grandes atrizes mesmo.
 

No fim das contas, estamos aqui com uma produção admirável em mãos, cheia de camadas de referências, belissimamente fotografada e repleta de imagens marcantes. Se por um lado não vai fazer a cabeça da maior parte do público, que tem tachado o filme de tedioso e desinteressante, por outro ninguém pode dizer que é um trabalho ordinário. Resta esperar que com o tempo os fãs e admiradores de Zombie que torceram o nariz no primeiro momento deem o braço a torcer e se abram mais para as inúmeras qualidades deste trabalho tão singular que é The Lords of Salem.

3 comentários:

  1. Achei o texto maravilhoso e adoro quando quem escreve eh tão observador quanto eu.
    Concordo plenamente que a divulgação antecipada ( e põe antecipada nisso!) me irritou muito. Demorou uma eternidade pra ser lançado! Ainda não tive a oportunidade de assistir. Não sei se chegará ou se já está nos cinemas daqui, mas se estiver disponível para download, será que vocês podem dar essa força? Digo, informando onde posso encontra-lo.
    Não conhecia o blog e gostei bastante do que vi. Com certeza voltarei!

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    1. Obrigado pelo comentário, Flavinha! Infelizmente acho que o filme não entra em cartaz nos cinemas brasileiros, provavelmente será lançado direto em dvd, e daqui a um bom tempo. Mas já está facilmente disponível pra download em vários lugares, basta dar uma pesquisada básica aí no Google. =)

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  2. Esse filme é muito loko chapado minha esposa se diz ser uma bruxa se identificou muito com o filme quer fazer até o símbolo que tem na testa delas esse filme é da hora.

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