
Casal de turistas vai pra uma ilha onde as crianças estão matando todos os adultos.
Crítica:
Crianças malvadas e psicopatas há tempos não são novidade
em filmes de terror. Ainda assim, a simples ideia de um ser supostamente
inocente, vulnerável, frágil e indefeso representar o centro da maldade em uma
história sempre foi perturbador o suficiente pra gerar diversas produções ao
longo das décadas tendo crianças como vilãs ameaçadoras e aterrorizantes.
Geralmente com um motivo extraordinário pra justificar tal sacrilégio:
possessões demoníacas, mutações, intervenção alienígena, descendência direta do
capeta, zumbificação, anões disfarçados e por aí vai. Os Meninos, filme
espanhol controverso dirigido por Narciso Ibáñez Serrador, nada contra a
corrente fantástica e apresenta uma perversidade infantil crua e sem maiores
explicações, o que contribui na construção de um clima tenso e sufocante, mas
não resiste a tentar de certa forma “justificar” o comportamento dos pirralhos,
uma das falhas mais graves do roteiro e que por pouco não põe tudo a perder (só
não mais que a estupidez do casal de protagonistas). Talvez porque eram os
anos 70 e crianças agindo de forma tão vil e cruel seria algo forte demais pro
público lidar sem um atenuante? É uma possibilidade. O fato é que ainda hoje,
uma sessão de Os Meninos pode fazer você reconsiderar seriamente suas convicções
em relação a questões polêmicas da atualidade como legalização do aborto e
redução da maioridade penal. BRINCADEIRA. Não, sério. Vamos ao filme.
A sequência dos créditos iniciais consiste numa espécie
de minidocumentário exibindo cenas chocantes de crianças padecendo em diversas
guerras e conflitos ao longo do último século, com números de quantas foram
mortas em cada guerra e um narrador em off explicando que nessas situações elas
acabam sendo sempre as maiores vítimas. Obviamente o filme quer desde já
estabelecer um ponto de vista, que é o de que os adultos são os culpados por
toda a dor, sofrimento e morte de crianças. Tá, né? Entendemos, vingança
infantil iminente. Depois de 7 minutos desse prólogo esclarecedor, estamos na
Espanha, na região de Benahavís, onde a novidade veio dar na praia na qualidade
rara de cadáver - que passa a não ser tão rara quando outros cadáveres começam
a surgir pouco depois. Nisso, acompanhamos a chegada dos mocinhos Tom e Evie,
um casal de turistas britânicos que vieram curtir uns dias de paz e
tranquilidade e comemorar a gravidez (a-há!) de Evie. Eles passeiam e se
divertem por Benahavis, tirando fotos, assistindo a queima de fogos e se
deslumbrando com tantas pessoas exóticas. Porém a cidade está em época de
festa, cheia de gente e barulho, e o objetivo maior de Tom é chegar à ilha de
Almanzora, um lugar isolado, pacato e silencioso onde ele havia passado férias
12 anos atrás.
As coisas ficam meio tensas quando Tom e Evie vão comprar
filme fotográfico e Evie vê na tevê uma reportagem sobre crianças morrendo numa
guerra (a-há!) em algum país asiático, e logo depois o dono da loja faz um
sermão sobre como crianças são as que mais sofrem com a guerra, a fome etc.
(a-há!), basicamente repetindo tudo que foi dito no prólogo. Tom aparentemente
fica muito afetado com a fala do homem da loja e passa o resto do dia
contemplativo. Logo a gente descobre que tem mais caroço nesse angu: ao expor
sua perturbação pra Evie, ficamos sabendo que ele sugeriu que ela fizesse um
aborto (a-há!) no início da gravidez, já que eles já têm outros dois filhos e
não precisariam de mais uma boca pra alimentar. Nesse ponto, o foreshadowing
com todo papo crianças-vítimas-de-adultos fica tão pouco sutil que eu não pude
deixar de me lembrar daquela novela do Manoel Carlos em que a Alinne Moraes
ficava tetraplégica. A informação que a personagem sofreria um acidente que a
deixaria sem os movimentos foi divulgada com bastante antecedência, e a novela
não poupou, nos capítulos anteriores ao evento fatídico, cenas como a
personagem correndo na esteira (com close nas pernas), dançando (com close nas
pernas) ou dizendo o quanto amava as próprias pernas. Err... De qualquer forma,
toda essa introdução dos personagens nos primeiros 20 minutos do filme consegue
ser bem eficiente, estabelecendo a dinâmica do casal e o ritmo lento e paciente
com o qual a maior parte da narrativa vai ser conduzida.
No dia seguinte, Tom e Evie alugam um barco e seguem em
direção a Almanzora. Chegando lá, são recepcionados por um grupo de meninos na
beira do cais. O primeiro sinal de que tem algo muito estranho no ar é quando
Tom, que é capaz de se comunicar com os locais por falar espanhol, pergunta a
um dos meninos EM INGLÊS o que ele está pescando. Sem resposta, ele pergunta o
que o menino está usando como isca e tenta ver o que tem dentro da cesta de
pesca dele, sendo impedido agressivamente pelo garoto, que lança pra Tom um
olhar ameaçador. Mas enfim, são só crianças (algo que você vai ouvir mais vezes
ao longo do filme), e Tom e Evie começam a explorar a cidadezinha da ilha. O
negócio fica ainda mais estranho quando eles percebem que a cidade está
totalmente deserta, sem uma alma viva pra dar informação. E é nesse cenário
desolado, com um céu azul opressivo e um sol escaldante, em meio a casas
abandonadas, que a ação vai se desenrolar a partir de agora. O que aconteceu
com a população de Almanzora? Qual é a dessas crianças sinistras que começam a
aparecer? Bom, acho que você já sabe as respostas, mas mesmo assim...
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Evie e Tom decidem dar um tempo num barzinho pra ver se aparece alguém. Cansada da viagem e com fome, Evie resolve ficar esperando no bar enquanto Tom sai pra buscar mantimentos no mercado próximo, onde vemos o primeiro cadáver (Tom não vê). Nisso, Evie recebe a visita de uma garotinha no bar, que não diz nada, apenas fica encarando Evie com um sorriso. Ela vê que Evie está grávida e se ajoelha para acariciar a barriga dela, o que comove Evie (esta, aliás, é uma cena-chave do filme). Após esse contato fofo, a menina simplesmente vai embora sem dizer nada, deixando Evie frustrada. Quando Tom retorna, os dois seguem para uma pousada, também abandonada. Checando o registro da pousada, Tom vê que supostamente há outros turistas hospedados, mas quando vai olhar nos quartos não encontra ninguém. Agora é o momento em que a porra fica realmente séria.
Evie e Tom decidem dar um tempo num barzinho pra ver se aparece alguém. Cansada da viagem e com fome, Evie resolve ficar esperando no bar enquanto Tom sai pra buscar mantimentos no mercado próximo, onde vemos o primeiro cadáver (Tom não vê). Nisso, Evie recebe a visita de uma garotinha no bar, que não diz nada, apenas fica encarando Evie com um sorriso. Ela vê que Evie está grávida e se ajoelha para acariciar a barriga dela, o que comove Evie (esta, aliás, é uma cena-chave do filme). Após esse contato fofo, a menina simplesmente vai embora sem dizer nada, deixando Evie frustrada. Quando Tom retorna, os dois seguem para uma pousada, também abandonada. Checando o registro da pousada, Tom vê que supostamente há outros turistas hospedados, mas quando vai olhar nos quartos não encontra ninguém. Agora é o momento em que a porra fica realmente séria.
Da porta da pousada, Evie vê ao longe um homem com um pau
na mão (risos), e chama Tom empolgada com a possibilidade de a ilha não estar
completamente abandonada. Quando Tom vai ver o que está acontecendo, surge da
esquina uma menina BIZARRA correndo e rindo. Quando ela vê o homem, que na
verdade foi se esconder dela, ela pega o pau da mão dele e o golpeia até a
morte! Tom e Evie se assustam, e quando Tom vai confrontar a menina perguntando
por que ela fez aquilo, ela apenas fica olhando pra ele e gargalhando de um
jeito macabro, e depois sai correndo. Sem reação e chocado, Tom carrega o corpo
do homem até um celeiro. Ele sai por um momento pra se recuperar do choque, até
que ouve um barulho estranho dentro do celeiro. Quando ele volta pra olhar, o
corpo não está mais onde ele deixou, e sim pendurado como se fosse uma pinhata
enquanto uma menina de olhos vendados rodeada por um grupo de crianças
alucinadas tenta acertá-lo com uma FOICE. Tom olha incrédulo a cena, mas vai
embora antes da gente descobrir se, derrubada a pinhata, as crianças comem os
órgãos do cadáver.

Agora o que você faz quando se dá conta que a ilha está
sendo dominada por uma legião de crianças psicopatas e sanguinárias, já tendo
testemunhado um assassinato?
( ) Tenta chamar
a polícia.
( ) Dá o fora o
mais rápido possível antes que sobre pra você e pra sua mulher grávida.
( X ) Finge que nada de mais está acontecendo e continua
na ilha.
Sim, minha gente! Tom decide que é uma boa ideia não
contar pra Evie o que acabou de ver, afinal ela está grávida, não vamos
preocupá-la com uma mera gangue de pirralhos homicidas rondando a área, muito
menos com o detalhe insignificante dele e da mulher estarem sozinhos na ilha.
Até porque ele está obcecado com a ideia de recriar o clima maravilhoso de
quando ele esteve na ilha 12 anos antes, algo claramente possível nessas
circunstâncias. E aí o que é que Tom faz? Deixa Evie SOZINHA no lobby da
pousada enquanto sobe de novo só pra dar mais uma olhada e talvez encontrar os
outros turistas. Chegando no quarto, ele encontra mais dois cadáveres! Então
Evie grita, Tom volta correndo e com ela encontra um homem local de meia-idade
desorientado e assustado. Um dos únicos sobreviventes da carnificina
orquestrada pelas crianças, ele conta que tudo começou na noite passada, quando
elas simplesmente ficaram loucas e começaram a invadir as casas com paus e
facas dizimando toda a população de adultos. Mas óbvio que ninguém podia
revidar, afinal, como indaga o título original do filme, “quem poderia matar
uma criança?” Pouco depois, entra na pousada a filha chorosa do homem, fazendo
toda uma cena pra ele sair com ela. Tanto o homem quanto Tom e Evie sabem que é
truque da menina, mas mesmo assim, por amor à filha, o homem sai de mãos dadas
com ela, e cinco passos adiante já está morto. E Tom decide que finalmente é
hora de dar o fora!
E agora vem a parte que você começa a ficar tão puto com
a imbecilidade de Tom que começa a torcer pra ele ser morto pelo primeiro
trombadinha que aparecer pela frente. Ele puxa Evie pelo braço e a obriga a
correr o mais rápido possível, até que ela tropeça e CAI COM A BARRIGA NO CHÃO.
E ELE NEM LIGA! Ele simplesmente a arrasta obrigando-a a continuar correndo,
até eles serem encurralados por uma parede de crianças. Daí a perseguição
começa, eles pegam um jipe vão parar do outro lado da ilha, onde numa casa
isolada em que eles pedem ajuda aparentemente está tudo normal. Adultos vivos,
crianças brincando normalmente na água etc. Parece seguro. Até que chegam dois
dos meninos sinistros do início e é revelado o elemento sobrenatural da
história: o impulso assassino é passado de uma criança pra outra por
olhar/telepatia, e agora as crianças que estavam brincando estão “infectadas”
também. Tom e Evie fogem de novo, retornam pro outro lado da ilha, dão de cara
novamente com a barreira de crianças e Tom finalmente tem uma boa ideia: passar
por cima de todas. Ele pisa fundo, mas aí Evie agarra o volante, desvia das
crianças e eles batem o carro! Retardada.
Finalmente chegamos ao clímax do filme, quando Tom e Evie
ficam presos num quarto enquanto as crianças tentam arrombar a porta. Num
momento crucial, Tom não tem escolha a não ser finalmente matar uma das crianças,
o que faz Evie surtar. Pouco depois ela começa a sentir dores insuportáveis na
barriga e se dá conta de que o bebê que carrega está na verdade matando-a - o
que ela meio que merece por ter sido uma inútil durante todo o filme. Então ela
se lembra da menina que acariciou sua barriga mais cedo, confirmando que seu
bebê havia se tornado “um deles”. Pena que é estúpido como os pais, afinal, de
que adianta ele matar Evie estando ainda no útero e consequentemente morrendo
também? Enfim, nada que faça muita diferença a essa altura. Daí é todo um
drama, Evie morre e Tom espera o dia raiar pra enfrentar os pirralhos. E se
ainda restava alguma dúvida sobre quem pode matar uma criança, eis a resposta:
Tom pode. Face a uma multidão de crianças, ele pega uma metralhadora e abre
fogo, derrubando meia dúzia. Aí quando você se empolga porque Tom finalmente
tomou uma atitude, ele LARGA A METRALHADORA E SAI CORRENDO. Ok, é uma tática de
sobrevivência largamente usada por mocinhos imbecis, mas mesmo assim... Puta
que pariu. Ele corre pro barco, mas o tempo que ele leva pra desatar o nó é o
tempo das outras crianças o alcançarem. Nisso, a guarda costeira chega, vê Tom
atacando as crianças e abre fogo contra ele. Tom morre, depois a polícia morre
e finalmente as crianças estão livres para conquistar o continente e iniciar um
reinado de terror no planeta! Fim.
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Vamos então por partes. Onde o filme ganha: no ritmo
lento da narrativa. Essa é uma característica que quase sempre beneficia
histórias de terror e é cada vez mais rara do gênero. De forma paciente, somos
apresentados aos personagens e aos elementos do enredo, num processo em que a
atmosfera e a tensão são construídas gradativamente, com a inserção de pequenos
detalhes aqui e ali: a tensão velada entre Tom e Evie por motivos que nunca
ficam totalmente claros, o fato de Evie não falar espanhol, deixando-a totalmente
dependente do marido pra se comunicar com os nativos, a cena em que todo mundo
na praia corre pra uma direção específica e eles ficam “excluídos” sem saber o
que aconteceu, e por aí vai. A ambientação é outro ponto alto. A decisão de
desenrolar a ação quase que inteiramente à luz do dia, entre as ruas vazias de
uma cidadezinha abandonada, funciona em favor do filme, beneficiado também por
uma excelente fotografia. Não há muitos truques, tudo é filmado de uma forma
bem natural, conferindo um realismo bastante adequado pra história. As crianças
são genuinamente sinistras, e um dos maiores acertos do filme é nunca pesar a
mão em como a maldade se manifesta na personalidade delas. Quando uma menina
espanca um homem até a morte, por exemplo, ela não parece possuída por alguma
força alienígena ou faz uma expressão facial ameaçadora; ela age como uma
criança normal, como se estivesse brincando e se divertindo, o que deixa tudo
mais perturbador.
E agora onde o filme escorrega: apesar da origem exata do
impulso assassino das crianças nunca ser explicada, o filme força a barra em
diversos momentos pra tentar justificar ou tornar “compreensível” o
comportamento delas, empurrando goela abaixo uma espécie de comentário social
que simplesmente não é interessante pra história. Como se o prólogo imenso já
não fosse suficiente, ainda somos obrigados a ouvir diálogos totalmente
artificiais sobre o tema “Crianças, as Maiores Vítimas das Guerras”, como se esse
fosse o assunto mais debatido em todos os círculos sociais do mundo. É um
aspecto que tira um pouco a força da história, quando o filme deveria seguir
mais à risca os passos de uma das suas inspirações assumidas, Os Pássaros, e
deixar o mistério totalmente no ar (com o perdão do trocadilho). Sem dúvidas, a
sensação de ameaça, desconcerto e impotência seria dez vezes maior, deixando a
história ainda mais aterrorizante. Outro ponto negativo são as ações
implausíveis dos protagonistas, sobretudo na segunda metade do filme. A
negligência de Tom é injustificável, e a passividade de Evie chega a níveis
irritantes. Tanto tempo é investido pra que a gente crie uma empatia com eles e
todo o investimento vai por água abaixo quando os dois passam a agir como completos
idiotas, chegando num ponto em que não faz mais diferença se eles saem vivos ou
não.
Resumindo, Os Meninos é um filme de muitas qualidades,
mas é uma pena que os defeitos acabem neutralizando boa parte delas. E sim,
vale a pena dar uma conferida mesmo que não seja uma experiência totalmente
satisfatória. O longa está disponível em DVD no Brasil no box “Obras-Primas do
Terror 3”, lançado em agosto pela Versátil, que, aliás, tem feito um trabalho
impecável nas edições, finalmente colocando no mercado nacional dezenas de
filmes raros e indispensáveis na coleção dos amantes de terror. Fica a dica.
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