terça-feira, 28 de maio de 2013

A Última Onda

Título original: The Last Wave

Ano: 1977

Direção: Peter Weir

País: Austrália

Duração: 106 min

Elenco: Richard Chamberlain, David Gulpilil, Olivia Hamnett, Frederick Parslow, Vivean Gray, Nandjiwarra Amagula
Avaliação:
Sinopse:
Em meio a estranhas tempestades em Sydney, um advogado é chamado para defender um grupo de cinco aborígines de uma acusação de assassinato e acaba embarcando numa perturbadora jornada de autodescoberta.

Crítica:
“Acho que eu estava fazendo a barba uma manhã e observando a água cair da torneira, então pensei: ‘Ela parece estar sob controle.’ E se eu não pudesse fechar a torneira e nenhum encanador conseguisse dar jeito? Nós achamos que temos a natureza sob controle. Desastres sempre acontecem em países do Terceiro Mundo; na minha parte do mundo não nos preocupamos com isso porque as coisas são muito organizadas. Simplesmente não permitiríamos que um ciclone atingisse a cidade. Parece que nós perdemos o contato com o medo da natureza. Mais ainda que o respeito por ela, porque há muitos poemas escritos sobre respeitar a natureza. (O medo) fazia parte de um balanço das coisas, um balanço interior, que passamos a eliminar com a Revolução Industrial. Crianças nascem com esse balanço. Nós as ensinamos a eliminá-lo, mas ele eventualmente encontra o caminho de volta em algumas pessoas.”
- Peter Weir, 1979


Há trabalhos que são tão fascinantes que acaba se tornando uma tarefa difícil introduzi-los dignamente senão recorrendo diretamente à fonte. E a fonte aqui – e prepare-se para uma enxurrada de metáforas aquáticas – são as palavras do cineasta Peter Weir, em entrevista concedida a Judith M. Kass na ocasião da estreia estadunidense de seu então novo filme A Última Onda, pouco mais de um ano depois do lançamento original na Austrália. Uma verdadeira meditação acerca dos poderes e mistérios da natureza (tanto a que está à nossa volta como a nossa própria), a produção suscita reflexões que operam em vários níveis, tomando como ponto de partida o encontro de dois homens de culturas diferentes que se veem peças de um enigma que pode revelar o fim do mundo como o conhecemos.

A sequência dos créditos iniciais mostra um ancião aborígine pintando símbolos e gravuras em uma estrutura rochosa à beira do mar. Somos avisados de que todos os personagens retratados no filme são fictícios e que qualquer semelhança com pessoas reais é mera coincidência, o que dito tão prematuramente é no mínimo interessante. O pesadelo molhado de Weir tem então início numa região desértica da Austrália, onde crianças de uma pequena escola brincam durante o recreio. Sons de trovões e ventos fortes anunciam uma tempestade, apesar de o dia estar ensolarado e o céu completamente sem nuvens. Para o assombro de todos no local, começa a chover torrencialmente, e a professora (que pelo visto esqueceu de colocar o sutiã antes de sair de casa) recolhe os alunos pra dentro da sala de aula. Logo em seguida, enormes pedras de granizo desabam sobre a escola, quebrando janelas e chegando a ferir uma das crianças. Mais adiante no filme ficamos sabendo que nunca havia chovido granizo na região. Nesses minutos iniciais já somos capazes de apreciar a estonteante fotografia de Russell Boyd, colaborador habitual de Weir que posteriormente ganhou o Oscar por seu trabalho em Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo.

Seguimos para Sydney, também assolada pela inusitada tempestade, onde conhecemos o advogado de impostos David Burton, nosso herói, vivido por Richard Chamberlain. Nosso primeiro contato com David é no momento em que ele está saindo do trabalho, quando é abordado por um funcionário italiano fã de óperas que dá a ele de presente um pimentão amarelo. David se mostra agradável e receptivo ao agradecer a lembrança e afirmar que nunca tinha visto antes um pimentão daquela cor. A situação aparentemente banal não é inserida aqui por acaso, já que revela de forma bem sutil um pouco da natureza do protagonista e prefigura de forma simbólica alguns dos eventos que acontecerão mais à frente. Vemos então David chegando em casa, e ele parece levar uma vida de comercial de margarina, mostrando-se um pai amoroso com suas duas filhas pequenas e tendo um bom relacionamento com sua esposa Annie (Olivia Hamnett). Só que algo o perturba, e durante o jantar ele se depara com água jorrando escada abaixo e encharcando o carpete, e todos correm pro andar de cima preocupados com possíveis estragos causados pela tempestade. Mas aparentemente era só a banheira transbordando porque as duas pirralhas esqueceram de fechar a torneira. Durante a noite, David tem um sonho com a silhueta de uma figura ameaçadora na chuva.

Nesse ponto de A Última Onda já podemos sentir o tom de ameaça subjacente que imbui todo o filme. Antes mesmo da trama principal se estabelecer, percebemos que há um clima quase onírico de mistério no ar, graças principalmente à montagem e à hipnótica trilha sonora de Charles Wain, um dos elementos mais marcantes da produção.

Somos apresentados ao padrasto de David, o Reverendo Burton (Frederick Parslow), a quem ele conta sobre seus problemas de sono e os pesadelos que tem tido. O Reverendo diz que durante a infância David costumava ter muitos pesadelos, na maioria das vezes com “coisas normais” como bruxas e fantasmas. Mas em sua expressão podemos notar que ele omite algo de que David possivelmente não se recorda. Depois ele diz que David tinha medo de ir dormir porque as pessoas nos sonhos “roubavam seu corpo” e o levavam para outros lugares, uma descrição que soa particularmente perturbadora.

Na sequência que segue, vemos um aborígine correndo desesperado pelo sistema de esgoto da cidade, como se estivesse fugindo de algo. Ele é pego de surpresa por um outro aborígine, que o acusa de ter roubado coisas e diz que ele vai morrer. Ele consegue escapar e continua correndo pela cidade, até ser finalmente encurralado por um grupo de outros cinco aborígines e ficar frente a frente com um velho barbudo (o mesmo que vimos durante os créditos iniciais), que aponta em sua direção um osso e profere o que parece ser um encanto tribal. O fugitivo acaba tendo uma parada cardíaca e cai morto no chão. Durante a autópsia, os peritos não conseguem chegar a uma conclusão racional para determinar a causa da morte, e decidem acusar o grupo dos cinco aborígines de homicídio por afogamento, por conta de uma pequena quantidade de água encontrada nos pulmões do homem.

David é então inesperadamente chamado pra defender o grupo, e apesar de ser um advogado de impostos, aceita o caso como um favor a um amigo. Primeiro ele tem um encontro com quatro dos cinco aborígines acusados, que se mostram bem relutantes em dizer como o homem, que se chamava Billy, realmente morreu. David tem certeza que eles escondem algo, e Annie comenta sobre a possibilidade deles fazerem parte de uma tribo, apesar de todos afirmarem que não existem aborígines tribais vivendo na cidade. David passa a noite acordado pensando sobre o caso, e num momento em que sai na varanda presencia uma simbólica “chuva” de sapos. A chuva de sapos é um fenômeno relatado em diversas ocasiões ao longo da História que pode acontecer devido a condições de forte instabilidade atmosférica, o que pode provocar uma das chamadas trombas d’água, mandando pelos ares animais leves. Mas é também um fenômeno famosamente citado na Bíblia como uma das dez pragas do Egito (que também incluem chuva de granizo), e que no contexto do filme pode representar uma espécie de sinal, e até mesmo uma libertação. Mas libertação de quê? David tem então um sonho/visão em que um misterioso aborígine entrega a ele uma pedra com símbolos tribais manchada de sangue.

No dia seguinte, David acorda bem abatido, enquanto Annie parece não gostar nem um pouco de toda a atenção que o marido tem dedicado ao novo caso. Um novo encontro é promovido entre ele e o grupo de aborígines, e dessa vez o que havia faltado na primeira ocasião, Chris, está presente. E quando David o vê, SURPRESA! Chris é o homem dos seus sonhos. Ele, aliás, é interpretado por David Gulpilil, um ator de descendência aborígine que construiu toda uma carreira interpretando personagens nativos em filmes como o ótimo A Longa Caminhada de Nicolas Roeg. David convida Chris para jantar em sua casa, na esperança de que, afastado dos demais, ele revele algo mais substancial sobre a morte de Billy. À noite, Chris chega à casa de David acompanhado de Charlie, o velho barbudo que conhecemos nos créditos e apontando o osso da morte pra Billy. Charlie é apresentado como um pintor, e como não fala inglês, Chris cumpre o papel de tradutor. Em determinado momento, David mostra seu álbum de família a Charlie, que fica particularmente interessado numa foto do avô da mãe de David. Ficamos sabendo então que David nasceu na “terra do nascer do sol”, que é a América do Sul em relação à Austrália. David não entende menções ao “território de seu clã”, e quer saber sobre o significado do sonho que teve com Chris. Chris explica o que são sonhos, e como eles são um elemento central da cultura aborígine. Para eles, o dreamtime, ou “tempo dos sonhos”, é uma linha de tempo alternativa, uma realidade paralela, que funciona como um modo de comunicar e adquirir conhecimento, inclusive alertando sobre acontecimentos futuros. Depois que Chris e Charlie vão embora, vemos Charlie reunido com outros aborígines e entrando numa espécie de transe, em que ele visita a casa de David e aparece pra ele. Não há mais dúvidas de que David possui a habilidade de “sonhar”.

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Ao ser questionado por David sobre o que exatamente está acontecendo, Chris diz que ele não sabe mais o que os sonhos são. Aqui fica claro de que, de alguma forma, David perdeu o contato com algo que fazia parte dele, que faz parte de suas raízes. Chris também diz que ele pode ser um mulkurul, termo que designa um membro de uma tribo da terra do nascer do sol. De volta ao caso, David diz ao seu colega advogado que pode alegar a inocência dos aborígines pelo fato da morte de Billy ter sido resultado de um ritual tribal, ideia que não é bem aceita. A intolerância da civilização ocidental em relação a culturas diferentes, elemento explorado no filme, é representada nesse momento pelo discurso desdenhoso do colega de David, que o repreende pela “visão romântica” dos negros nativos. Pouco mais tarde, Charlie é visto por uma das filhas de David observando a casa do lado de fora, e enquanto a menina lida com a situação de forma tranquila, Annie entra em pânico, expressando um medo que claramente tem a ver com a natureza estranha de Charlie, que o torna uma figura ameaçadora para ela.


Quando David resolve confrontar Charlie a sós a respeito do ocorrido, temos uma das cenas mais arrepiantes do filme. David é recebido pela mulher de Charlie, e quando ele pergunta se ela pode traduzir a conversa, Charlie revela que fala inglês, e muito bem. “Às vezes eu falo inglês, às vezes não”, ele diz. Quando David pergunta quem exatamente Charlie é, Charlie devolve a pergunta repetidas vezes, entoando a indagação “Who are you?” como se fosse um mantra. O efeito é hipnótico e genuinamente inquietante, e a pergunta acaba soando como se estivesse sendo feita ao espectador. Charlie pergunta a David se ele é um peixe, uma serpente ou um homem, e ele diz que não é nenhuma dessas coisas. Ele é um mulkurul. Charlie então entrega a David um machado e o aconselha a não falar no tribunal. Pouco depois, mais uma grande cena marcante, que é o momento em que David, preso no trânsito, tem uma visão da cidade submersa, com pessoas e objetos flutuando na rua completamente tomada pela água. Uma imagem simples, mas de grande efeito. Ao chegar em casa e ser questionado por Annie sobre o que está acontecendo, ele diz que não sabe, mas que está assustado. Ele acha que sua família não está mais segura em Sydney, e diz a Annie que vá com as crianças pra outra cidade por um tempo.

O julgamento finalmente começa, mas Chris se recusa a contar o que de fato aconteceu, já que a revelação implicaria na sua morte. David tenta persuadi-lo, e durante alguns instantes do depoimento, Chris confirma que ele e os outros acusados fazem parte de uma tribo, e que o resultado da morte de Billy foi por conta de um ritual, por ele ter visto coisas que não deveria. Mas Charlie (que descobrimos se manifestar também como uma coruja), faz uma aparição no tribunal, como se estivesse dando um aviso, fazendo Chris recuar e desmentir tudo. David, exaltado, revela ao júri tudo que sabe a respeito dos aborígines e sua experiência com eles até então, questionando Charlie sobre o segredo relacionado a pedras sagradas e à chuva. Ele acaba perdendo o caso. Desmotivado, tem uma conversa com seu padrasto, que finalmente revela que durante a infância ele teve sonhos premonitórios com a morte da mãe durante todo o mês que antecedeu o fato. É durante esta cena que David diz uma das falas mais marcantes de A Última Onda: “Nós perdemos os nossos sonhos. E quando eles voltam, não sabemos o que significam.” Agora ele tem certeza que possui algo especial, que ficou reprimido durante anos, e mais do que nunca fica determinado a descobrir o segredo de todo esse mistério.

David volta pra casa e dá de cara com a cena familiar da água escorrendo pela escada, inconscientemente prevista no início do filme. Só que agora não é só a banheira transbordando, e sim a casa inteira sendo destruída e inundada pra valer, enquanto Charlie em forma de coruja (e possivelmente o responsável por esta “punição”) observa do lado de fora. David é então conduzido por Chris – ou talvez uma manifestação dele, já que ele deveria estar na prisão – através do sistema de esgoto da cidade, até chegarem ao templo sagrado onde estão as respostas que David tanto anseia em ter. A partir deste ponto, David segue sozinho, e ao entrar no local secreto se depara com um mural com várias pinturas e símbolos nas paredes. Ele analisa cuidadosamente as figuras, que incluem um calendário, e percebe que elas se referem a uma profecia que anuncia o fim do mundo com a chegada de uma onda gigante que deixará tudo submerso – a última onda. Ainda há, nesta mesma cena, um momento muito evocativo em que David tem uma espécie de encontro com ele mesmo ao encontrar uma máscara do próprio rosto, provavelmente preservada ali há milhares de anos. Ele então consegue encontrar o caminho de volta à superfície, indo parar na praia. E é lá, ajoelhado à beira do oceano, que ele tem sua visão final, numa cena impactante e ambígua que abre espaço pra um mar de interpretações.
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A Última Onda é uma viagem extraordinária que propõe uma série de questionamentos, principalmente no que diz respeito à nossa tendência de abdicar de nossos instintos e de nossa espiritualidade em favor de uma segurança forjada, representada no filme pelos valores e costumes da civilização ocidental. David é um personagem altamente reprimido, que mesmo usufruindo de um bom emprego e de uma vida em família estável, se sente constantemente perturbado pela falta de algo que não consegue identificar – justamente o laço com suas verdadeiras origens, com sua matéria essencial. O filme é por vezes criticado por revelar o mistério da história, ao contrário do que acontece no trabalho anterior de Weir, Picnic na Montanha Misteriosa, também uma belíssima obra. Mas mesmo trazendo respostas, A Última Onda opera numa esfera alegórica, e suas “revelações” são repletas de ambiguidades. O filme tanto pode satisfazer como um suspense tradicional de fantasia apocalíptica como também funcionar como uma reflexão sobre o modo com que conduzimos nossas vidas. Será que podemos nos sustentar apenas no que é palpável? Por que descartamos tão facilmente o inexplicável e o obscuro como se fossem aspectos ameaçadores do ser?  Weir procura enaltecer o mistério, e como ele mesmo diz, o medo que faz parte do nosso balanço interior. O homem moderno está cômodo e seguro demais pra ser capaz de conhecer a si mesmo.

Como não poderia deixar de ser, há toda a simbologia da água. Entre muitas outras coisas, a água representa o subconsciente, simbolizando no filme os níveis psíquicos e não palpáveis do mundo à nossa volta, incluindo aí o mundo dos sonhos. Quando os estranhos fenômenos naturais relacionados à água começam a acontecer, é como se todos os nossos aspectos que costumamos negligenciar viessem à tona para abrir os nossos olhos, nos conduzindo a uma grande e significante autodescoberta. E quando o filme chega à sua conclusão, a sensação é parecida com a provocada por 2001: Uma Odisseia no Espaço; mesmo não havendo uma explicação cem por cento racional, há a certeza de que se chegou ao centro de algo, a um conhecimento absoluto que encaixa todas as peças do enigma.  E pro bem ou pro mal, dali não há mais volta.

E, claro, há todos os aspectos palpáveis que contribuem para que o filme seja tão eficiente. A direção de Weir é esplendorosa, e não há discussão aqui, afinal estamos lidando com um dos grandes gênios do Cinema. A já mencionada fotografia de Russell Boyd é maravilhosa, assim como a trilha de Charles Wain, que mesmo econômica e minimalista causa um efeito bastante singular e perturbador. Os silêncios também são brilhantemente utilizados, sobretudo nas sequências de sonho. O filme, aliás, tem em sua totalidade um forte aspecto onírico, e Weir é um dos poucos cineastas que conseguem transportar às telas com propriedade essa sensação de sonho/pesadelo. Fora o constante tom de mistério, que faz parecer que a todo momento há algo escondido em cada cena, na espreita, prestes a se revelar.

Há também as ótimas atuações. Richard Chamberlain consegue construir de forma sensível e sutil um personagem que desperta nossa empatia, o que é absolutamente essencial pra proposta do filme. Olivia Hamnett convence como a esposa de David, uma mulher desprendida e de bom coração, mas insegura e despreparada para lidar com as mudanças que tomam conta da vida do casal. E claro, há as incríveis performances de David Gulpilil e Nandjiwarra Amagula, que apenas com suas presenças em cena conseguem nos hipnotizar, conferindo genuinidade a cada olhar, cada gesto.

No fim das contas, a grande mensagem de A Última Onda é que os mistérios da existência servem como estímulo para o crescimento espiritual. E isso fica bem claro no momento em que David questiona seu padrasto: “Por que você não me contou que havia mistérios? Você apenas ficou ali em pé na igreja explicando todos eles.” A resposta óbvia é insatisfatória e não convincente, mas serve de alerta. Assim como as chuvas fora de estação ou o pimentão amarelo que você talvez nunca tenha visto na vida.

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